Retornando a estas páginas de
publicações esporádicas, abordo um tema que me sugeriu meu amigo Murilo Mendes:
por que em espanhol se diz la mar e la sangre (no feminino)?
Para entender a questão, é preciso,
antes de tudo, ter em conta que o gênero
gramatical (nas línguas românicas,
masculino e feminino) não é intrínseco à palavra. (Não estamos tratando do gênero natural:
macho, masculino; fêmea, feminino.) O que determina o gênero gramatical são
fatores externos. Normalmente as palavras do português e do espanhol seguem o
gênero a que pertenciam em latim. Na evolução, porém, que deu origem às línguas
neolatinas, agiram sobre as palavras, afastando-as às vezes do gênero original, (1) o
desaparecimento do gênero neutro, (2) a terminação que receberam nesta ou naquela
língua, (3) a analogia com outros vocábulos e, principalmente, (4) o uso.
A palavra sangue, em português, e sua correspondente sangre, em espanhol, provêm de sanguis,
sanguinis, substantivo masculino em latim e português, porém feminino em
espanhol. Neste caso, o fator
preponderante foi a terminação. Assim como ocorreu com la cumbre ‘o cume’ e la legumbre ‘o legume’, o uso etiquetou como
femininas as palavras terminadas por CONSOANTE + RE. Daí, la
sangre (s.f.), que pertence à classe
dos heterogenéricos (palavras que têm gênero diferente em espanhol e português).
Quanto à palavra mar, esta tem origem num substantivo do gênero neutro em latim: mare, maris. Como consequência do
desaparecimento do neutro, o conjunto de seus vocábulos foi-se alinhando dentro
da dicotomia masculino/feminino. Em português, após sobreviver como palavra
feminina no período arcaico do idioma, tornou-se, finalmente, substantivo
masculino; em francês (la mer) preponderou
o feminino; em espanhol, a palavra oscila entre os dois gêneros.
Hemingway, em The old man and the sea (o primeiro livro que eu li em inglês), conta
que os pescadores cubanos dizem “el mar”, quando este está bravio, e “la mar”,
quando as águas estão calmas.
Resumindo, assim como em português se diz
a personagem ou o personagem, em
espanhol pode-se dizer el mar (s.m.)
ou la mar (s.f.). Constitui,
portanto, pura ignorância o que escreveu anos atrás a revista
Veja a respeito do sentimento dos bolivianos com relação à perda, na Guerra do
Pacífico (1879-1883), da faixa de terra que lhes permitia o acesso ao mar: “Os bolivianos
querem tanto retomar sua saída para o mar, que dizem la mar em vez de el mar”. Pergunto:
e as bolivianas?
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